quinta-feira, 26 de maio de 2016

Seção do leitor : De Minas para o Brasil

E hoje temos mais um texto incrível para a Seção do Leitor! Quem nos escreve  hoje é a minha colega de profissão Mayra Fernanda Silveira Diniz, Cientista de Alimentos formada em 2010 (VI turma) e Mestra em Ciência e Tecnologia de Alimentos (2013). 

Mayra atua na área de alimentação sustentável e cultura alimentar, além de prestar consultoria nas áreas de higiene e legislação de alimentos. Atualmente, cursa especialização em nutrição ayurvédica. 

Durante sua graduação, participou do Grupo de Estudos em Frutas e Hortaliças (GEFH) com projetos de desenvolvimento e aperfeiçoamento da produção de polpa de juçara; e do Grupo de Estudos em Segurança do Alimentos (GESEA), com projetos de educação de manipuladores  de alimentos e consumidores quanto às Boas Práticas de Fabricação. Em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) trabalhou com o "Desenvolvimento de diretrizes para alcance de uma alimentação sustentável", e o tema que apresentamos hoje aqui no blog está muito bem relacionado ao seu projeto de Mestrado, intitulado "Queijo Canastra: um estudo envolvendo aspectos culturais e parâmetros de inocuidade do alimento”.

No post de hoje, vamos embarcar numa deliciosa viagem para conhecermos um dos queijos mais famosos de Minas Gerais e também do Brasil, o Queijo Canastra, e também vamos entender melhor a importância deste alimento na riquíssima cultura alimentar mineira!


Faça como a Mayra,  compartilhe conosco a sua cultura alimentar! Conte-nos sobre as tradições alimentares de sua família ou mesmo de sua cidade, região ou estado, e contribua na valorização da cultura alimentar brasileira! Para saber como enviar seu texto, basta entrar em contato conosco enviando um e-mail!



Boa leitura!!

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  Neste artigo vamos falar sobre queijos artesanais. Será contado aqui sobre um queijo mineiro, muito famoso (e delicioso): o queijo Canastra. 
  O estado de Minas Gerais leva consigo uma tradição na fabricação de laticínios há centenas de anos, o que possibilitou que o queijo Minas artesanal se tornasse um dos produtos tradicionais dessa região. Tão forte é esse alimento em termos culturais que, em 2008, o “modo artesanal de fazer queijo de Minas” nas regiões do Serro e das Serras da Canastra e do Salitre foi considerado Patrimônio Imaterial brasileiro pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 
  O queijo Minas artesanal é produzido nas regiões do Serro, Alto do Paranaíba (Cerrado) e Serra da Canastra há dezenas de anos em diversas cidades do estado. Estima-se que a produção tenha sido iniciada no Serro, no início do século XIX, quando os imigrantes portugueses fabricavam um queijo tipo caseiro, nos moldes do queijo “Serra-da-estrela” de Portugal. 
  Apesar de já haver uma discussão em termos legais no que diz respeito à fabricação do queijo Minas artesanal desde 2002, quando foi criada a primeira legislação específica para este produto, foi o reconhecimento pelo IPHAN que deu início ao seu aparecimento nas mídias. Desde então, o queijo artesanal vem ganhando espaço em termos de produção, comercialização, pesquisas e trabalhos de ONGs que buscam seu fortalecimento.
  Dentre essas regiões, o Serro e a Serra da Canastra tiveram, em dezembro de 2011 e março de 2012, respectivamente, as indicações geográficas reconhecidas para a produção de queijo artesanal, pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI. A indicação geográfica permite que um produto ou serviço seja oficialmente originário de um local, região ou país; ela garante sua origem, qualidades e características regionais. Dessa maneira, somente o queijo produzido em determinados municípios das regiões do Serro e da Serra da Canastra pode receber a denominação de origem, reduzindo o risco de fraudes e garantindo a originalidade do produto. Essa certificação reconhece as peculiaridades de cada alimento feito tradicionalmente, sendo resultado de uma complexa interação entre solo, fauna, flora e clima que, quando combinada com métodos de produção e matérias-primas tradicionais, não pode ser reproduzida em nenhum outro lugar. 

Serra da Canastra


Serra da Canastra. Imagem retirada de: viagem.uol.com.br
   A região da Serra da Canastra se localiza no sudoeste do Estado de Minas Gerais. A paisagem da região é considerada uma das mais belas de Minas Gerais. O relevo é constituído de chapadões de altitude, o que permite o aparecimento de inúmeras nascentes e cachoeiras. A Serra da Canastra possui, ainda, exuberante flora e variadas espécies de animais silvestres. Lá está o Parque Nacional da Serra da Canastra. A beleza das serras e a existência de inúmeros mananciais formam um cenário atraente para o turismo ecológico, que se tornou uma fonte expressiva de renda para as famílias locais. No entanto, a região tem na agropecuária uma das principais fontes de riqueza. A presença da agricultura familiar é marcante, mostrando consequente envolvimento na atividade leiteira. Ao pé da serra estão as vacas que fornecem matéria-prima para a elaboração do queijo Canastra. A criação é extensiva e preserva o equilíbrio ecológico. A produção de queijo é uma atividade tradicional, pertencendo ao modo de vida das famílias locais que desde o início da ocupação destes campos viam na fabricação do queijo uma alternativa segura de renda e de sobrevivência. A fabricação e consumo do queijo na região da Canastra se confundem com a história do povoamento local, iniciado com a busca de minerais e pedras preciosas.

O queijo Canastra


  Universalmente o homem tem como hábito nomear um produto de acordo com sua região de origem. Uma revisão cuidadosa da literatura publicada sobre o queijo revela a existência de aproximadamente dois mil nomes distintos que se aplicam a este alimento, e continuam aparecendo periodicamente novas denominações para descrever variedades. E assim nasceu o queijo Canastra, produzido na região da Serra da Canastra. 
  Na região da Canastra o queijo artesanal é produzido nos municípios de Bambuí, Delfinópolis, Medeiros, Piumhi, São Roque de Minas, Tapiraí e Vargem Bonita. As famílias destas cidades o têm como principal fonte de renda e empregos. Para se ter ideia, anualmente são produzidos, por mais de 1.800 produtores rurais, aproximadamente 4.500 toneladas de queijo. Esses produtores rurais, em sua maioria, exercem essa atividade, passada de geração a geração, não apenas pela tradição, mas também pela falta de opção para realização de outros ofícios. O relevo montanhoso da região dificulta o transporte do leite para as indústrias, e o queijo ainda se mostra a melhor alternativa econômica para quem vive ali.  

Leite cru x tradição


  Um dos principais pontos a serem discutidos com relação ao queijo Canastra é sua fabricação com leite cru, ou seja, não pasteurizado. Isto significa que o leite utilizado para produzir o queijo não passa por um processamento térmico que elimina a carga microbiana inicialmente (e naturalmente) presente ali. Este fato representa, ao mesmo tempo, dois pontos de vista:

- De um lado, o leite cru pode conter microrganismos que colocam em risco a saúde do consumidor;
- De outro lado, o modo de fazer o queijo artesanal é tradicional, ou seja, só é possível produzir este alimento a partir de leite cru; para tanto, argumenta-se que se o leite for pasteurizado não é possível atingir a qualidade sensorial esperada, além do modo tradicional de fabricação ser modificado.

   Dessa forma, vemos que há um conflito que envolve os aspectos higiênico-sanitários e culturais e, infelizmente, poucas são as ações que visam unificar este assunto de forma a fortalecer este produto e, ao mesmo tempo, garantir a segurança do alimento.
  Vemos que em outros países, como a França, o consumo de leite cru e queijo elaborado com leite cru são normais devido a um trabalho educacional de longa data que vem sendo feito com produtores e consumidores. Mas é importante ressaltar que os queijos industrializados vêm ganhando cada vez mais espaço no mercado, o que não deve ser encarado de forma totalmente negativa. Porém, sabe-se que com o advento dos alimentos industrializados, os produtos artesanais podem ser desvalorizados. Hoje, milhares de alimentos elaborados localmente estão desaparecendo no mundo todo, inclusive os queijos franceses, onde, apesar de haver um movimento favorável aos alimentos tradicionais, mais de 50 variedades se perderam nos últimos 30 anos. Isso acontece porque os produtos tradicionais possuem, muitas vezes, limitações em sua comercialização, seja pela produção insuficiente ou pelo desconhecimento de suas qualidades pela população.

Queijo maturado


  Na pesquisa que realizei em 2012 com os produtores de queijo Canastra, pude perceber que uma das limitações para a comercialização desse alimento de forma segura é a realização da etapa de maturação. Ela faz parte do processo e caracteriza o produto, porém, já não vem sendo realizada em grande parte das propriedades que avaliei .

Queijo Canastra. Imagem retirada de: http://economia.uol.com.br/

  A maturação reduz a carga microbiana do queijo por ser um processo que envolve a ação de bactéria lácticas benéficas e que colaboram na fermentação.  Sua predominância elimina naturalmente as bactérias patogênicas. Porém, vale ressaltar que o leite utilizado deve ter boa procedência, ou seja, ser de um rebanho que possua um bom controle sanitário. Resumindo, se o leite for de boa qualidade, o queijo provavelmente matura. Se o leite for de uma qualidade inferior,  o queijo provavelmente  irá estragar antes da maturação por não haver competição entre as bactérias “boas" e “más". 
  As principais doenças que devem ser controladas em um rebanho para queijos de leite cru são a brucelose, a tuberculose e a mastite. Mas também deve-se ter um cuidado especial quanto ao período de carência dos medicamentos utilizados nos animais, para que estes não sejam liberados no leite.
  No início da produção do queijo Canastra, estima-se que a maturação durava de 30 a 60 dias. Hoje, os queijos são comercializados com 1 dia de maturação e, muitas vezes, os maturados são vendidos apenas sob encomenda.

  Diversos são os motivos pelos quais a maturação não vem sendo realizada. Dentre eles, o principal fator é o econômico, já que o queijo maturado leva mais tempo para ficar pronto para ser comercializado; além disso, os produtos são vendidos por peso, e o queijo maturado, por ter perdido água e gordura, pesa menos que o queijo fresco. Questões como falta de espaço para a maturação e o desconhecimento da população quanto a essas questões também são de extrema importância quando se discute este assunto.
  Vale ressaltar que para cada queijo artesanal deveria existir um período mínimo de maturação, uma vez que o processo de fabricação, embora similar, não resulta em um mesmo queijo. Por exemplo, o queijo Canastra e o queijo do Serro são “queijos Minas artesanais”, mas seu sabor e formato são diferenciados. Também é importante lembrar que essa diferenciação se deve ao terroir, palavra francesa que significa “território”, relacionando cada produto ao seu meio geográfico particular e às formas específicas de produção.

Cultura x higiene e legislação

   
   Em termos legais, o queijo Minas artesanal não pode ser comercializado fora do estado de Minas Gerais. Como citado anteriormente, há uma Lei específica para a  sua fabricação, que permite que se utilize leite cru, desde que o queijo seja maturado. No entanto, o tempo de maturação não é determinado pela lei. 
  Mesmo assim, sabe-se que esse queijo atravessa as fronteiras do estado, sendo comercializado em São Paulo, Rio de Janeiro e outros locais. Essa comercialização clandestina prejudica todos os envolvidos na cadeia de produção do queijo artesanal (produtores, comerciantes e consumidores). É muito comum que caminhões carregados de queijo sejam barrados pela fiscalização e toda a carga descartada. São toneladas de produto literalmente jogadas no lixo, prejudicando os produtores e os atravessadores. Já os consumidores correm o risco de consumir um produto de procedência desconhecida, que pode estar contaminado por microrganismos que colocam sua saúde em risco, denegrindo a imagem do queijo artesanal e, mais uma vez, prejudicando aqueles produtores que se esforçam para fabricar um queijo de qualidade.

 Diversos atos normativos vêm surgindo com o intuito de legalizar a produção e comercialização deste produto, porém, ao estudar essa realidade, acredito que devemos ir além das normas. Precisamos fortalecer o queijo artesanal em diversos sentidos, como, por exemplo, educando o público consumidor; orientando produtores a fabricarem o queijo dentro das normas mínimas de higiene, exigindo menos em termos físicos (como, por exemplo, a construção de novas queijarias) e mais em questões práticas; incentivando ONGs e instituições locais a apoiar projetos que busquem a produção segura do queijo artesanal, respeitando os aspectos culturais. Os produtos rurais, provenientes da agricultura familiar, tendem a ser mais valorizados pela sua qualidade simbólica, o que pode vir a se tornar um eixo para a renovação das economias locais no Brasil e no mundo. Assim, ao aprender a produzir um queijo seguro nas condições que lhes cabe, os produtores poderão competir com o mercado de queijos industrializados, de forma saudável e positiva, sem necessidade de transporte clandestino.


Referência bibliográfica: 

Silveira-Diniz, M.F. Queijo Canastra: um estudo envolvendo aspectos culturais e parâmetros de inocuidade do alimento. Dissertação apresentada para título de Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos. Universidade de São Paulo. Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”. 2013. 159p.

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