terça-feira, 8 de setembro de 2015

Do Nordeste para o Brasil

Por Anna Paula S. Silva                                 


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Seja no café da manhã, no almoço ou no lanche da tarde, essa delícia da culinária nordestina tem ganhado cada vez mais espaço e versões aqui na região sudeste. É uma massa geralmente fina, branquinha e pode levar recheios muito variados, sejam eles doces, salgados, leves ou mais reforçados. 


Já sabem do que eu estou falando? Quem respondeu Tapioca acertou!


Esse elemento da cultura alimentar nordestina tem sua origem na alimentação indígena a partir do consumo da mandioca sob diversas formas, é patrimônio imaterial e cultural da cidade de Olinda, PE.


   Imagem extraída de: http://www.ocotidiano.com/news.php?news=1867
 

Vamos agora viajar um pouco e conhecer mais sobre essa delícia começando por sua matéria-prima, a mandioca.



Mandioca, macaxeira, aipim, castelinha... 


A diversidade da nossa cultura alimentar já começa desde a denominação da matéria-prima utilizada no preparo da tapioca. Aqui no estado de São Paulo costumamos falar "mandioca", enquanto que no Rio de Janeiro "aipim" é o termo adotado, e no Nordeste "macaxeira" é a designação para a espécie Manihot esculenta , planta que pertence à família das Euforbiáceas.

A mandioca, presente em quase todo o território nacional, é uma cultura que não exige tratos culturais muito específicos e que está presente na alimentação de milhares de pessoas em nosso país, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. 

Segundo dados do IBGE, a produção total de mandioca no Brasil no ano de 2013 foi de 21.484.218 toneladas, sendo os 5 maiores produtores da raiz no mesmo ano: Pará (com uma produção superior a 4.600.000 toneladas), Paraná, Bahia, Maranhão e São Paulo. Ainda comentando sobre estatísticas, a região Norte, embora apresente uma área colhida menor do que a região Nordeste, é a principal produtora da raiz, com uma participação de 34,76% na produção nacional, o que equivale a quase 7.500.000 toneladas. Só por esses dados já deu para ter uma noção da importância desta matéria-prima amilácea na alimentação do brasileiro, não é mesmo?

A mandioca esteve presente em nossa cultura alimentar desde quando era alimento básico consumido por indígenas da tribo tupi-guarani, que ocupavam o litoral brasileiro. Esse povo detinha o conhecimento sobre o plantio, a colheita e o preparo da raiz para consumo, e foram os responsáveis pela denominação do alimento. Certamente você já deve ter ouvido falar sobre a lenda da Mani-oca, pertencente ao folclore Tupi: 

A lenda diz que certa vez um casal de índios tupi geraram uma criança de pele muito branquinha, o que causou certa surpresa aos dois e à tribo, e a ela deram o nome de Mani. A menina era muito alegre e amada por todos da tribo, contagiava todos com sua felicidade. Porém, a partir de certo dia, Mani  passou a ficar mais quieta, silenciosa, pouco comia... até que um dia não se levantou da rede onde dormia. O pajé foi chamado, a tribo agitou-se, mas nada de descobrir o que afligia Mani... ela continuou deitada em sua rede, com um sorriso no rosto, sem doença ou dor. E assim a indiazinha faleceu. Os pais enterraram o corpo da menina na própria oca, e regavam a cova todos os dias - como era de costume da tribo - com água e com suas lágrimas de tristeza e saudade, até que um dia perceberam que do túmulo de Mani cresceu uma planta que tinha raízes de casca marrom e interior branquinho, como a pele de Mani. Da oca e da terra onde a criança foi enterrada surgiu o nome da planta: Mani-Oca, que passou a ser usada como alimento, para fazer a farinha e o Cauim, bebida à base de mandioca fermentada. 


Brava ou Mansa?


Existem dois tipos de mandioca popularmente conhecidos como a mandioca brava e a mandioca mansa. Esta última, também conhecida como mandioca doce, é a conhecida pelos diferentes nomes que apresentamos no tópico acima. A mandioca recebe o nome de brava ou de mansa dependendo da quantidade de glicosídeos cianogênicos presentes em suas raízes, mas tanto uma quanto a outra apresentam sim essas substâncias . Essas substâncias podem ser "quebradas" em compostos menores e de caráter tóxico, como acetona e ácido cianídrico (HCN), o qual pode atuar na inibição da cadeia respiratória de seres vivos. Este ácido está presente abaixo de 100 mg por cada quilo de raízes frescas de mandioca mansa, e estas são destinadas ao consumo humano in natura, vendidas em feiras e supermercados, e podem ser consumidas com segurança. Já a mandioca brava necessita de um preparo específico antes de sua utilização e consumo para que a substância tóxica seja eliminada. Logo, as mandiocas bravas são destinadas a indústrias de transformação, em geral produtoras de farinha. O alimento deve ficar "de molho" por diversos dias, e ainda passa por etapas de secagem e torrefação para que a farinha seja obtida e o HCN seja eliminado.  


Produtos da mandioca


A mandioca pode ser aproveitada integralmente. As partes aéreas, após tratamento adequado, podem ser destinadas à alimentação humana, podendo ser fritas, cozidas, utilizadas em bolos, biscoitos, farinhas mistas e outras preparações, além de também serem destinadas a alimentação animal. Além da farinha, existem diversos produtos e ingredientes obtidos a partir da mandioca, estes últimos são amplamente utilizados nas indústrias alimentícias - sendo exemplos: a maltose, glucose, gelatinas e fécula (utilizada, por exemplo, em produtos de preparo instantâneo, como sopas desidratadas, macarrão instantâneo, sobremesas lácteas, entre outros produtos alimentícios), obtidos da fração amilácea da raiz, sendo que o amido também pode ser utilizado em indústrias têxteis, de adesivos, farmacêutica e até mesmo de calçados.

A farinha de mandioca crua possui 361 kcal a cada 100g, e possui fibras alimentares e minerais como cálcio, magnésio e potássio. A farinha de mandioca torrada possui apresenta quase o mesmo valor calórico da farinha crua, são 365 kcal a cada 100g, em parte justificado pela quantidade considerável de carboidratos na porção (89 g a cada 100g da farinha torrada). O teor de fibras das duas farinhas é bastante próximo, mas a farinha de mandioca torrada possui teores de Cálcio e Magnésio mais elevados em comparação à crua (76 mg e 40 mg na porção de 100g, respectivamente), e os teores de potássio são relativamente próximos. Esses dados constam da Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TACO), desenvolvida pela Unicamp, a qual você pode ter acesso clicando aqui e então conhecer mais sobre a composição centesimal dos alimentos.


Farinha de mandioca torrada. Imagem retirada de: gogopixlibrary.com

Aqui compartilho uma curiosidade da minha família. Meu avô materno era nordestino filho de um negro e uma índia, miscigenação que o denomina cafuzo, e quando jovem, trabalhou em uma "Casa de Farinha". A Casa de Farinha é o lugar onde se transforma a mandioca em farinha e em outros produtos, e meu avô passava horas mexendo um tipo de tacho com grandes quantidades de farinha de mandioca usando uma espécia de "rodo" de madeira enorme, para secá-la e então ser utilizada na preparação de outros alimentos, como bijú e a tapioca. Ainda existem casas de farinha no Brasil, principalmente na região nordeste, e o trabalho 100% artesanal não é nem um pouco fácil. Começa desde o plantio e colheita da mandioca, lavagem, remoção das cascas, moagem, até a etapa final (mas não por isso mais rápida) de obtenção da farinha. Meu avô virava constantemente a farinha para secá-la totalmente, sem queimar, até que ela ficasse bem branquinha, e trabalhava duro sob o calor intenso do forno à lenha e da chapa de ferro enorme e extremamente quente. 

A Casa de Farinha ainda é berço de músicas e cantos criados pelos próprios trabalhadores, de conversas sobre a vida durante todo o tempo de processo, é um símbolo de que mesmo nas maiores dificuldades da vida, o amor pelo trabalho e pelas pessoas prevalece sobre todo o esforço e cansaço após um longo dia de trabalho pesado. Aqui deixo registrados o meu respeito e minha admiração por essas pessoas guerreiras, que vivem para que a tradição não seja esquecida e perdida frente a todo o "progresso" que vivemos dia após dia. O vídeo abaixo é uma reportagem sobre essas casas, no qual você pode entender um pouco mais sobre o funcionamento da casa e como é, em geral, sua infra-estrutura, bem como constatar a paixão e a dedicação dos trabalhadores para produzir a farinha e outros produtos. 




O amido da mandioca ainda pode ser transformado em polvilho doce ou polvilho azedo. A diferença entre esses dois tipo consiste no fato do polvilho azedo ser fermentado e seco por exposição ao sol, adquirindo suas características tecnológicas e sensoriais próprias, podendo ser utilizado na produção de pão de queijo, biscoitos e sequilhos. Pode-se dizer que é um tipo de amido modificado, e sua temperatura de gelificação (formação de gel) é menor do que a fécula/amido de mandioca convencional. Já o polvilho doce não é fermentado, apenas obtido da lavagem da massa de mandioca ralada após decantação em água e separação da fração amilácea de outras (proteínas, fibras e impurezas), e secagem. 


VOCÊ SABIA? Para fazer um pão-de-queijo delicioso, além da escolha do queijo é interessante utilizar  uma mistura dos polvilhos doce e azedo. O polvilho doce tornará a massa mais elástica e homogênea, enquanto que o azedo irá favorecer a formação dos alvéolos (bolhas de ar) dentro do pão-de-queijo, deixando-o mais aerado.
                                  

Outro produto obtido a partir da mandioca e que é a estrela do nosso post de hoje é a tapioca, do tupi-guarani tapi (pão) + oca (casa), obtida a partir da fécula/amido de mandioca, também chamado de goma. Para obter a goma, a mandioca é descascada, lavada e triturada até se obter uma massa fina, que é então misturada com água, peneirada e passa por um tempo de "descanso" para a separação do amido (que irá precipitar) da água. Depois da decantação, a goma é seca, tanto por secagem artificial (como em forno, por exemplo), quanto natural (secagem ao sol). 

Preparar a tapioca é muito simples, mas eu confesso que a tapioca genuína, a preparada e consumida lá no Nordeste, é bem diferente das que consumimos aqui, na minha opinião. Quando viajo ao Nordeste como pelo menos uma tapioca todos os dias, e sempre tento descobrir o que pode dar essa diferença entre a tapioca Nordestina e a "Sudestina", mas não encontrei a resposta até hoje. Acredito que deve ser o ambiente alegre e o borogodó desse povo arretado! 

Para preparar essa delícia você deve peneirar a goma em uma frigideira aquecida até que cubra o fundo. Como eu gosto dela mais grossinha, geralmente coloco um pouco mais, mas isso é bem subjetivo, você pode fazer conforme gostar mais. O fogo deve ser baixo, e logo logo a massa começará a se aglutinar devido à gelatinização do amido. Aí você já pode colocar o(s) recheio(s) de sua preferência, como queijo e/ou presunto, banana e chocolate, coco, carne seca desfiada, camarão, romeu e julieta, ou só com toque de manteiga... a sua criatividade é o limite para escolher e combinar os recheios! Depois é só virar, esperar mais alguns segundos, e servir! 

Eu já experimentei algumas variações salgadas e doces, e a minha preferida é a de queijo de coalho (foto abaixo). Mas uma que nunca esqueço foi uma que experimentei quando visitei uma aldeia indígena em uma das viagens para o Nordeste, da tribo dos potiguaras (que por sinal, é a tribo que minha bisavó por parte de mãe pertencia). Feita na hora, regada com leite de coco que os índios mesmo prepararam e servida na folha de bananeira. Uma delícia, carregada de sabor e cultura!



Tapioca com queijo de coalho, deliciosa!


Aliás, já experimentei outra delícia feita de tapioca: o sorvete! Isso mesmo, sorvete de tapioca! É simplesmente fantástico uma delícia! Experimentei pela primeira vez em uma sorveteria na cidade de João Pessoa, PB. Lembra vagamente sorvete de coco, mas a textura é um pouco diferente. Aqui deixo uma receita de sorvete de tapioca para os interessados, ainda não testei, mas quero experimentar logo em breve. Que tal também fazerem em casa e depois me contarem o que acharam? Lá vai!

Ingredientes: 


·         600 ml de leite fervido (morno)
·         100 ml de leite de coco
·         100 g de farinha de tapioca
·         1 lata de leite condensado
·         250 ml de creme de leite fresco


Modo de preparo: 


Numa tigela misture leite fervido (morno) e leite de coco. Despeje farinha de tapioca e deixe esfriar. Acrescente leite condensado, creme de leite fresco e mexa com um batedor de arame. Coloque numa caixinha de isopor e coloque no freezer por 3 horas. Retire o sorvete do freezer e transfira para uma batedeira. Bata por 10 minutos e volte ao freezer por 3 horas. Transfira para uma batedeira e bata novamente por 10 minutos. Volte ao freezer por mais 3 horas. Transfira para uma batedeira e bata por mais 10 minutos. Volte ao freezer e sirva no dia seguinte.


Tapioca é muito calórica?


Depende do recheio e da quantidade que você for consumir. Aliás, a questão do alimento X engordar ou não, não está somente relacionada ao seu teor calórico, mas também ao estilo de vida, atividade física regular e adequada, e aos hábitos alimentares de quem o consome. A tapioca com manteiga, por exemplo, tem  348 kcal por a cada 100g, considerando-se 6g de manteiga com sal. A porção de 100g possui 63,6g de carboidratos, 31mg de colesterol (fornecido exclusivamente pela manteiga, no caso), 30mg de cálcio, além de minerais como potássio, fósforo e ferro. A tapioca pode ser mais calórica se você acrescentar recheios mais ricos em gorduras ou em açúcares, por exemplo. O alimento não contém glúten, logo as pessoas celíacas podem consumir tranquilamente. 


Patrimônio Cultural e Imaterial



A tapioca está presente até mesmo em letras de músicas de Chico Buarque e Moraes Moreira , e é patrimônio cultural e imaterial da cidade de Olinda, PE. Este alimento versátil ainda é utilizado para fazer cuscuz de tapioca, bolo e pudim, cubinhos de tapioca com queijo, e inclusive já foi criada por uma rede de restaurantes de comida nordestina, chamada Brasil Vexado, a pizza de tapioca, ou pizzoca. 

A tapioca constitui um patrimônio por fazer parte da herança cultural nordestina transmitida de geração em geração, constitui parte da identidade de um povo e possui forte presença na cultura alimentar daquela região e também da região Norte do país. Os conhecimentos, as técnicas, instrumentos e lugares culturais a ela associados também o colocam como patrimônio cultural e imaterial. Este título foi concedido pelo Conselho de Preservação do Sítio Histórico de Olinda em 2006, e diz-se que é lá em Pernambuco, em Alto da Sé, que é feita a tapioca mais tradicional do país. 

Produtos da Tapioca


Apresento-lhe abaixo alguns produtos que comentei anteriormente e que são obtidos da tapioca. Existem diversas receitas na internet que ensinam a fazer essas delícias e suas variações. Fala se não dá vontade de experimentar todos ?!


Bolo de tapioca. Imagem retirada de: www.receitadetapioca.com.br
Sorvete de tapioca. Imagem retirada de: panelinha.ig.com.br
Pudim de tapioca. Imagem retirada de: www.receitassupreme.net
Pizza de tapioca. Imagem retirada de: www.pinterest.com
Dadinhos de tapioca com queijo-coalho, prato muito famoso do Restaurante Mocotó, de autoria do chef  Rodrigo Oliveira. Imagem retirada de: http://receitas.folha.com.br/receita/2236

Cuscuz de tapioca. Imagem retirada de: www.dicaslegais.net




Conhece mais alguma delícia preparada com TAPIOCA?
Qual a sua versão favorita? Tem alguma curiosidade ou história sobre o tema? COMPARTILHE e ALIMENTE o Cultura Sobre a Mesa conosco!


Gratidão a todos!

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Referências consultadas:

ADITIVOS E INGREDIENTES. O Polvilho Azedo. Disponível em: <http://www.insumos.com.br/aditivos_e_ingredientes/materias/208.pdf>. Acesso em 03 set. 2015.

CENTRO DE PRODUÇÕES TÉCNICAS. CPT. Processamento da mandioca resulta em diversos produtos bem aceitos na indústria alimentar. Disponível em:<http://www.cpt.com.br/cursos-agroindustria/artigos/processamento-mandioca-resulta-diversos-produtos-bem-aceitos-industria-alimentar.. Acesso em 05 set. 2015.

CHICHERCHIO, C.L.S. Conab. Disponível em:<http://www.conab.gov.br/OlalaCMS/uploads/arquivos/13_06_05_10_14_46_mandioca_e_derivados_-_nocao_produtos.pdf>. Acesso em 04 set. 2015.

EMBRAPA. Efeito do Processo de Fabricação da Farinha de Mandioca. 2006. Disponível em:<http://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/43362/1/Doc.267.pdf>. Acesso em 01 set. 2015.

GASPAR, L. Patrimônio imaterial de PernambucoPesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife.  2010. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar./index.php?option=com_content&view=article&id=808%3Apatrimonio-imaterial-de-pernambuco-1&catid=50%3Aletra-p&Itemid=1/>. Acesso em: 05 set 2015. 

G1. Reportagem mostra a tradição das 'Casas de Farinha', no interior da Paraíba. 2014. Disponível em:<http://g1.globo.com/pb/paraiba/jpb-1edicao/videos/t/edicoes/v/reportagem-mostra-a-tradicao-das-casas-de-farinha-no-interior-da-paraiba/3674075/>. Acesso em 05 set. 2015. 

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